quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Artigo de um ex-intérprete da ONU e da OMS sobre o Esperanto

Mito e realidade

CLAUDE PIRON

Quando eu era criança, diziam-me:"Não tenha medo de se perder. Use sua língua, pois quem tem boca vai a Roma". Mas mal atravessei a fronteira do meu país e defrontei-me com outra realidade: o idioma que falavam não era o mesmo que o meu!

Aconselharam-me: "Quer se comunicar com estrangeiros? Use os idiomas que você aprendeu na escola!". Mas de que maneira, se através dos idiomas que aprendemos durante anos na escola mal conseguimos balbuciar algumas frases?

Disseram-me: "Falando inglês, você será compreendido em qualquer lugar do mundo!". Mas, um dia, num vilarejo espanhol, presenciei um acidente entre dois automóveis, onde os motoristas - um sueco e um francês - em vão procuravam se entender e se fazer entender pelos policiais espanhóis. Certa vez, numa cidadezinha tailandesa, vi um angustiado turista tentar explicar o que sentia ao médico local, sem conseguir seu intento. Durante anos trabalhei para a ONU e para a OMS, nos cinco continentes, e por toda parte, fosse na Guatemala, na Bulgária, no Congo, no Japão ou em qualquer outro país, constatei que através do inglês só conseguia me comunicar com os empregados dos grandes hotéis e das companhias de aviação.

Disseram-me: "Graças às traduções, culturas de todos os povos são acessíveis a todos". Mas quando comecei a comparar os textos originais com as suas traduções, encontrei tantos erros, que cheguei à triste conclusão que "tradutore... traditore".

Disseram-me: "As grandes potências querem ajudar o Terceiro Mundo, respeitando as culturas nacionais". Percebi, no entanto, que as mais fortes pressões culturais são exercidas pelo inglês e pelo francês. Em primeiro lugar, a língua do país que concede o auxílio é sempre imposta nas relações com o país que o recebe. Entretanto, inúmeros problemas surgem quando, em programas de treinamento, os técnicos dessas potências procuram, através de seus idiomas, fazer-se entender pelos treinandos, que não possuem em suas línguas locais os mais elementares livros didáticos.

Disseram-me: "A instrução pública garantirá a igualdade de oportunidades para todas as crianças". No entanto, vi, principalmente em nações do Terceiro Mundo, famílias ricas enviarem seus filhos aos Estados Unidos ou Inglaterra, com a única finalidade de aprenderem o inglês, enquanto que do outro lado vi a grande maioria da população encarcerada no próprio idioma nacional e submetida a essa ou aquela propaganda, permanecer num estado socioeconômico inferior.

Disseram-me: "O esperanto fracassou". Entretanto vi, num vilarejo europeu, filhos de camponeses, após 6 meses de estudo do esperanto, comunicarem-se fluentemente com visitantes japoneses.

Disseram-me: "Falta ao esperanto um valor humano". No entanto, aprendi o idioma, li suas poesias, ouvi suas canções. Nessa língua comuniquei-me com brasileiros, chineses, iranianos, poloneses e até com um jovem do Usbequistão. E eis que o outrora tradutor profissional deve confessar a vocês que essas conversas que manteve foram, sem dúvida, as mais espontâneas e profundas que, algum dia, experimentou num idioma estrangeiro.

Disseram-me: "O esperanto e a cultura são incompatíveis". Entretanto, onde quer que eu fosse, seja na Europa Oriental, na América Latina ou na Ásia,o nível intelectual dos esperantistas era muito superior ao dos seus concidadãos de mesmo nível social. E quando presenciei debates internacionais nessa língua, muito me impressionou o nível dos participantes.

Naturalmente, mencionei fatos dos quais fui testemunha. E a todos eu disse: Venham! Vejam! Existe algo extraordinário: uma língua que resolve satisfatoriamente o problema da barreira linguística. Vi um húngaro e um coreano discutirem sobre filosofia e política numa fluência inacreditável, para quem havia aprendido o esperanto há pouco tempo. E eu vi isso e muito, muito mais...

Mas retrucaram: "Nada disso nos interessa, pois é sabido que o esperanto não é um idioma natural". Sinceramente não entendo. Quando aquilo que vai dentro do coração do homem, quando todos os seus impulsos, quando as mais sutis nuances do seu pensamento são comunicadas diretamente por meio de um idioma, dizem-me: "Esta língua não é natural".

Mas, então, o que é natural? Será, na falta de um idioma comum, a mudez de homens sedentos de diálogo? Será a incompreensão causada por um idioma feito de gestos mal compreendidos? Será a subnutrição cultural daqueles a que a diversidade linguística impediu o acesso a obras da cultura universal? Ou será "natural" o ridículo daqueles que, após anos e anos de estudo na escola não conseguem se exprimir com clareza no idioma alheio? Vejo, isso sim, a desigualdade e a discriminação linguística prosperarem no mundo inteiro. Vejo diplomatas e especialistas, através de incômodos aparelhos, ouvirem de vozes alheias aquilo que o seu interlocutor lhes quer comunicar. Será tudo isso, enfim, uma "comunicação espontânea "?

Das duas uma: ou querem me enganar ou estou ficando maluco!

Claude Piron é ex-intérprete da Ogranização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O artigo acima foi publicado na edição do dia 15 de maio de 1999 do jornal "Oeste Notícias", de Presidente Prudente (SP).

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